No início de 2003 conheci a Gorducha, o Pingo e o Thor.
A Gorducha era uma vira lata encantadora, baixinha e gordinha de 3 anos. Seus proprietários eram o Sr. Adilson e a Sra. Nilza, estavam casados há quase 40 anos e a cachorra era a neta que não tinham. Desde filhote andava para lá e para cá no colo, usava roupinhas, comia comida de criança e vivia sendo protegida de tudo. Até que “de repente” começou a atacar os donos. Ninguém conseguia entender como uma cachorrinha tratada com tantos mimos e carinhos podia estar fazendo aquilo. Os filhos do casal acreditavam que se tratava de uma fase e logo a cadela voltaria ao normal. Mas ao contrário do que imaginavam, os ataques foram piorando, até que um dia o Sr. Adilson levou uma mordida que quase lhe tirou os movimentos da mão direita. A família toda ficou assustadíssima, queriam doá-la para alguém, mas acabaram decidindo dar uma última chance e me ligaram pedindo socorro.
O Pingo era um Poodle de 1,5 ano, parecia um pompom, todo branquinho. Sua família eram o Sr. Júlio, a Sra. Márcia, a Ana Beatriz, filha do casal e a empregada Rosa. Quando ele chegou foi uma alegria imensa para todos. Tiravam fotos de todas as suas bagunças e gracinhas. A Ana até parou de pedir um irmãozinho. Para não dizer que estava tudo perfeito ele sempre fazia xixi no lugar errado. Todos diziam que com o tempo ele iria aprender, mas a situação estava tornando-se cada vez pior. Até que um dia ele urinou na perna de uma visita. Horas depois, ainda envergonhados, eles me procuraram.
O Thor era um Labrador chocolate com 11 meses. Era forte apesar da idade, seu pelo brilhava e tinha até pedigree. Tornou-se o centro das atenções da família, composta pela Sra. Fátima e seus dois filhos, Ricardo e Rosana, ele com 23 e ela 19 anos. Enquanto era um filhotinho tudo era festa. Vivia constantemente agitado e imaginavam que com o tempo iria se acalmar. Porém o convívio tornava-se cada vez mais difícil, até que um dia, durante um passeio, fugiu da coleira e quase foi atropelado. Ainda se recuperando do susto a Sra. Fátima me ligou, querendo iniciar o adestramento imediatamente.
Depois das primeiras semanas percebi que apesar de serem 3 cães de tamanhos, temperamentos e idades diferentes, 3 famílias diferentes e desconhecidas entre si, 3 diferentes problemas de comportamento, havia algo em comum: ninguém seguia as minhas orientações!!!
As desculpas mais comuns eram:
“Eu não sigo, porque sinto pena do cão.” – Esses eram os que menos faziam algo para melhorar o bem estar do animal.
“Eu só não faço, porque não tenho tempo livre.” – Esses eram os que gastavam muito tempo com o cão, fazendo atividades que não traziam nenhum benefício.
“Eu não preciso assistir as aulas, porque já tenho uma boa noção de adestramento.” – Esses eram os que normalmente mais atrapalhavam.
A cada semana eu perdia um pouco da esperança de um bom resultado naquelas três casas. Os cães adoravam as aulas e na minha presença comportavam-se bem, mas quando eu ia embora a confusão recomeçava. Os proprietários até brincavam:
– Você precisa vir morar conosco, só assim vamos ter um pouco de sossego. Sabemos que a culpa não é do cachorro, somos nós quem precisamos ser adestrados.
O resultado da desobediência das famílias foi um convívio extremamente desgastante com os cães, às vezes até perigoso e com o passar do tempo todos começaram a querer doá-los. Ainda insisti muito para que não fizessem isso, mas…
A Gorducha foi parar na casa de um pedreiro que já trabalhava para o Sr. Adilson há muitos anos. Todos ficaram tranqüilos, pois sabiam que seu novo proprietário gostava muito de animais e daria a ela todo amor e carinho que sempre teve.
O Thor foi doado para um amigo do Ricardo, que dizia ter o sonho de ter um Labrador. A família ficou feliz com a doação e tiveram a certeza de que ele seria mais feliz por estar saindo de um apartamento e indo morar em uma casa.
O Pingo foi doado provisoriamente, para a mãe da Sra. Márcia. A idéia era deixá-lo lá por um tempo e assim que algumas coisas fossem resolvidas eles o pegariam de volta. Todos ficaram satisfeitos, pois ele iria morar com uma pessoa conhecida.
A princípio tudo resolvido, todos estavam satisfeitos, doadores e receptores. Que maravilha! Aliás, todos menos eu, que sempre soube que doar cachorro mal educado é o pior que se pode fazer e decidi acompanhá-los com visitas ou telefonemas.
Em pouco tempo o amigo do Ricardo se deu conta que o espaço que o Thor tinha no apartamento (100 metros quadrados) era maior do que o quintal de sua casa (60 metros quadrados). Tentou devolvê-lo, mas como não foi possível, arranjou um jeito de mandá-lo para outro amigo que tinha uma enorme fazenda em Barra Mansa. “Agora sim ele vai ter bastante espaço.” – Foi o que todos pensaram.
Logo nos primeiros dias o Pingo demarcou toda sua casa nova. A mãe da Sra. Márcia, ao invés de seguir minhas orientações, decidiu deixá-lo de castigo na área de serviço, esperando que ele aprendesse a se comportar sozinho.
Na visita que fiz a Gorducha em sua nova e humilde casa, ela parecia respeitar seu novo proprietário, apesar de ser pela intimidação. O problema era que quando ele saia, a cachorrinha se sentia a dona do pedaço, até que um dia avançou em uma criança. Adivinhem o que aconteceu? Foi doada novamente! Foi morar em uma sociedade “protetora” dos animais.
Como eu já tinha um pé atrás com essa história de mandar cachorro mal educado pra fazenda, decidi ir ver como o Thor estava. O primeiro contato foi horrível! Me contaram que ele havia matado algumas galinhas e então passou a ficar dia e noite acorrentado. Aquele lindo Labrador chocolate, forte e cheio de energia, circulava por uma área de no máximo 6 metros quadrados, arrastando uma pesada corrente pelo pescoço. O segundo contato foi ainda pior, pelo que disseram ele teve uma infestação de carrapatos, foi perdendo o brilho da pelagem, o vigor físico, a alegria e muitos quilos, até que um dia “de repente” amanheceu morto.
Até os dias de hoje sempre que posso faço uma visita ao Pingo em sua cadeia de segurança máxima, a área de serviço, onde pelo visto cumprirá sua pena de prisão perpétua. Só sai dali quando vai ao veterinário ou pet shop. O pior é observar que toda a família diz que ele é muito bem tratado e que sem dúvida é um cachorro feliz.
O destino da Gorducha também foi entristecedor. Na primeira visita que fiz a ela fiquei tão impressionado que não dormi a noite. A cadela que fora acostumada a dormir na cama dos donos estava deitada sobre uma camada de fezes e urina. O cheiro era bem pra lá de insuportável! Tentei desesperadamente conseguir alguém que ficasse com ela, mas quando voltei uma semana depois, com uma pessoa interessada ela já havia falecido.
Infelizmente esses tristes destinos foram acompanhados por mim outras dezenas e dezenas de vezes. Passei a dedicar muita energia para evitar que cães sejam abandonados nas ruas, levados para as sociedades “protetoras” de animais, mas principalmente doados, que é muitas vezes o primeiro passo para um triste final.
Com exceção de uma das famílias (que teve seus nomes alterados) envolvidas nesta história, as outras autorizaram sua publicação, mas não quiseram deixar seus contatos.